Vinte e quatro de Dezembro. Noite fria, chuviscos, vento moderado de norte. Na vivenda Mariani (também conhecida como vivenda da Maria e do Aníbal) vive-se mais um natal. O Sr. Aníbal carrega uma última porção de lenha para junto da lareira.
- Aí, Maria! Como me doem as costas...
- Estás velho Aníbal. – responde, da cozinha, a D. Maria.
- Velho é o outro! Eu estou em boa forma. – e olha-se no espelho da entrada da casa com alguma vaidade.
- Quem é que está velho, Aníbal?
- O bochechas. - responde num sussurro - Aquele chato que não pára nem por um minuto de falar sobre mim...
A D. Maria aproxima-se do marido e abraça-o.
- Não dês importância àquele velhadas.
- Mas ele trata-me tão mal... eu que sou apenas um razoável professor de economia! – choraminga o Sr. Aníbal.
- Razoável, não. Tu, Aníbal, se fosses americano, serias um nobel. E se tivesses sido governante terias sido um grande estadista...
O Sr. Aníbal liberta-se dos braços da mulher e olha-a atónito.
- Maria, eu fui um governante, lembras-te? E não percebo como é que foste capaz de não me contradizer quando me considerei um «razoável professor de economia»...
- Mas, querido Aníbal, eu até te considerei digno do nobel! E quanto ao governante... Bem, tu bem sabes... Os cavaquistas é que governavam. Mas isso é passado.
- Esqueceste que o bochechas me considerou um razoável economista? Me chamou um mediano professor? – e assim, o Sr. Aníbal deixou a mulher e voltou para junto da lareira.
O bacalhau fumega na travessa. Após uma tarde inteira de árduo trabalho físico, o Sr. Aníbal sente-se esfomeado e saliva descontroladamente pela posta do rabo que acaba de ser colocada no prato, pela mulher. Está delicioso. Bem cozido como se quer.
Em poucos minutos, o Sr. Aníbal devora a posta e enaltece repetidamente os dotes culinários da mulher. Porém, a D. Maria mostra-se reservada e preocupada ao olhar para os pedaços de comida que se encontram espalhados em redor do prato.
- Aníbal, não te zangues comigo mas... acho que as aulas de etiqueta não estão a surtir grande efeito!
- Mas, porquê? Repara que já me saltam da boca muito menos bocados de comida que antes da campanha ter começado. Acho que quando voltar ao Brasil já me deixam comer em público...
A D. Maria senta-se na poltrona, defronte da árvore de natal e da incandescente lareira. O Sr. Aníbal segue-a com dois cálices de vinho do Porto. Brindam e ele senta-se no seu lugar, com uma manta sobre as pernas, contemplando o lume por breves instantes.
- Bolo rei? – pergunta o Sr. Aníbal – Ou passamos já aos presentes?
- Os presentes! – responde a D. Maria com um entusiasmo quase infantil.
Ao fundo da sala, o Sr. Aníbal põe um gorro de pai natal na cabeça e pega um enorme e pesado volume.
- Um presente digno e útil para uma primeira dama. – diz orgulhoso e sorridente o Sr. Aníbal.
A D. Maria solta uma risada estridente e entrega ao marido um volume consideravelmente mais pequeno.
- Para o meu Aníbal... Para quando te perguntarem não dizeres que eu é que sei!
O Sr. Aníbal volta para o seu lugar e, minuciosamente, dedica-se à abertura do presente, evitando danificar o papel.
- Aníbal! – grita entusiasmada a D. Maria – Todos os números da «Crónica Feminina»! És um amor...
- Bem te disse, Maria, que era um presente digno de primeira dama. – responde o Sr. Aníbal com um espontâneo sorriso de orgulho por fazer a mulher feliz – Ainda bem que conheço um alfarrabista de qualidade. Um apoiante...
Após a árdua tarefa de remoção do papel de embrulho, o Sr. Aníbal tem nas mãos um fabuloso exemplar ilustrado de «Os Lusíadas». Não parece nada entusiasmado. A mulher, radiante com a «Crónica Feminina» onde surge uma entrevista com Madalena Iglésias após o lançamento do sucesso «Ele e Ela», pergunta-lhe:
- Não gostaste, Aníbal?
- Gostei, gostei muito! – diz o Sr. Aníbal com enfado enquanto folheia «Os Lusíadas» em busca das escassas ilustrações.
- É o presente ideal para o futuro presidente da república. E tem gravuras.
O Sr. Aníbal sorri mecanicamente, pousa o livro no braço do sofá, pega no Semanário Económico e pensa com os seus botões, «Vai mas é chatear o Camões! A maldita história dos cantos ainda me persegue... até em casa!».
Após alguma diversão com os melhores números da «Crónica Feminina» e uns quantos cálices de Porto, a D. Maria serve duas generosas fatias de bolo rei e senta-se junto do marido. O Sr. Aníbal discorre sobre o apoio que lhe tem sido dado pelo Belmiro da Sonae e outros empresários do ramo dos congelados e afins. De repente, soa uma pancada abafada e a D. Maria cai no chão a gritar
:
- Aníbal!
O Sr. Aníbal socorre prontamente a mulher.
- Estás bem, Maria?
- Estou, Aníbal! – responde ela, num tom autoritário – Mas, por favor, pára de falar enquanto comes. Acabas de me cuspir em cima a fava do bolo rei. De tal modo que me derrubaste...
Encavacado, o Sr. Aníbal desfaz-se em desculpas mas, bem lá no fundo, sente que aquele incidente lhe proporcionou a vingança pelo descabido presente da mulher.
Já é madrugada. Apagam-se as luzes na vivenda Mariani, ali para os lados de Albufeira. Foi mais um natal sem incidentes de maior no tranquilo lar da família Silva. Apesar da fava que derrubou a santa D. Maria do sofá e da mensagem ordinária no telemóvel do Sr. Anibal, enviada fora de horas por um tal de MP-3!